No pacote fiscal, a luta de classes
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- 12 de fev.
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Atualizado: 25 de fev.
Por Marcelo Moreira do PSOL-Anápolis e professor no curso de Ciências Econômicas na UEG-Unidade Universitária de Ciências Socioeconômicas e Humanas-Prof. Nelson de Abreu Júnior.
Texto publicado originalmente no Goiás 246.
Pessoas e governos se endividam. Os motivos e as justificativas que tornam este ato tão corriqueiro são tão variados quanto às formas de captação de dinheiro para a formação da dívida e sua trajetória em nossa vida.
Uma criança que está prestes a nascer no Brasil receberá, antes do colo e do choro dos pais pela emoção de sua chegada, uma dívida de R$ 34.809,81. Numa economia forjada sob o capital fictício e parasitário, pessoas não se endividam, nascem endividadas.
Novidade alguma, salvo a cifra, o tempo histórico e o papel do capital financeiro na condução das economias globais! Desde que o capitalismo é considerado como o processo de criação e transformação de tudo o que for possível em instrumentos de acumulação e reprodução concentrada de renda e de riqueza, a engrenagem da economia capitalista (da economia monetária da produção) é lapidada pela incessante busca da forma absoluta do valor gerado pela coletividade: o dinheiro.
Os que antes intermediavam esse processo, hoje são os que controlam e direcionam os rumos das economias sob o ritmo da financeirização das vidas. Os maiores detentores da DPFi brasileira (Dívida Pública Federal interna) são as instituições financeiras: detém 28,6% da participação do estoque da dívida, seguidas dos fundos de pensão (23,7%) e dos fundos de investimento (22,4%).
A DPF brasileira (total, externa e interna) deve alcançar a casa dos R$ 7,4 trilhões até o final de 2024. O papel da dívida pública, entre outras coisas, é garantir ao governo a captação de dinheiro, via investidores (os que emprestam ao governo), para que ele possa honrar com seus compromissos financeiros (pagar dívidas, por exemplo). O resultado disso é que o governo paga, com dívida, alguma dívida financeira com valor atualizado, seja pela taxa de juros (a SELIC), seja pela inflação, seja pelo dólar, por exemplo.
Como endividamento pouco é bobagem, a SELIC é incorporada aos juros (ao estoque da dívida) e isso, evidentemente, pressiona o tamanho do endividamento do governo. A SELIC hoje está em 12,25%, após o aumento de 1 ponto percentual ocorrido na última reunião do Comitê de Política Monetária (COPOM) do Banco Central do Brasil.
Pois bem, a cada 1 ponto percentual de aumento da SELIC, a Dívida Líquida do Setor Público (que em outubro atingiu 62,1% do PIB) aumenta em R$ 55,2 bilhões e a Dívida Bruta Geral do Governo (que abrange Governo Federal, INSS e governos estaduais e municipais, e atingiu em outubro 78,6% do PIB) se eleva em R$ 50,3 bilhões. Para comparar: a dívida pública global representa 93,8% do PIB mundial; nas economias avançadas é de 112%; nas economias emergentes (onde o Brasil se encontra) é de 69%; e nas economias de baixa renda é de 50,3%, de seus respectivos PIBs. Ou seja, a participação da dívida pública brasileira no PIB ultrapassa os valores das economias emergentes e das economias de baixa renda, respectivamente.
Assim como o ciclo da vida em que nos reproduzimos como seres viventes neste mundo em desastre climático, no multiverso do capital financeiro nos reproduzimos em dívidas como seres viventes institucionalizados, num desastroso loop temporal que gera armadilhas de acomodação a um processo incessante de acumulação e reprodução de dívidas financeiras. Como se dá a acomodação?
O crescimento econômico de 0,9% no terceiro trimestre remete a expectativas positivas, por parte do governo, de que a economia brasileira crescerá 3,5% em 2024. Com tais expectativas e a economia aquecida, há pressão sobre os índices de preços que remete ao temor inflacionário. Esse temor levará o COPOM a aumentar a taxa de juros, a SELIC. O aumento dos juros e da inflação pressionam o estoque da dívida e vida que segue acomodada numa relação crescimento baixo-renda baixa-dívida que alimenta os investidores financeiros. Vejam, no acumulado dos dozes meses até outubro de 2024 os juros nominais pagos aos serviços da dívida pública foram da ordem de R$ 869,3 bilhões e seguem aumentando!
Endividamento pouco, meu pirão primeiro, o mercado financeiro, o que responde pela alcunha de “mercado”, se sentiu ofendido com as medidas anunciadas pelo ministro da Economia, Fernando Haddad. A principal crítica é que o governo apresentou medidas tímidas para garantir a sustentabilidade da dívida pública.
Ora, por que o pacote fiscal do governo federal estremeceu as bases do tal mercado? Que mercado é esse que fica insatisfeito com o anúncio de algo que o beneficia e em um contexto macroeconômico que provoca retornos positivos ao seu capital emprestado ao governo?
Acontece que o tal mercado não é um ser sem corpo, alma, CPF ou CNPJ. Trata-se de um conflito entre classes e intraclasses. Intraclasses porque o tal mercado financeiro é uma parte do jogo das chamadas forças reprodutivas capitalistas. Não por acaso, a parte ligada à geração de empregos e renda, o capital produtivo, não se manifestou com tamanha intensidade. Quando uma economia cresce economicamente, ela requer ações de planejamento com políticas voltadas ao desenvolvimento socioeconômico. E isso compromete a parte que cabe ao latifúndio especulativo, já que o governo estaria tensionado com gastos discricionários (custeio e investimentos, por exemplo), para além das despesas obrigatórias; e tudo isso relacionado à regra do arcabouço fiscal: em período de retração da economia, o limite de gastos é de 0,6% acima da receita do ano anterior; em período de expansão, o limite é de 2,5%.
O conflito entre classes se estabelece justamente quando junto ao pacote fiscal houve o anúncio do que o governo considera como “neutralidade fiscal” ou “justiça fiscal”: isenção do imposto de renda para quem recebe até R$ 5 mil com medidas de compensação: taxação no IR de quem recebe acima de R$ 50 mil e fim dos supersalários, por exemplo.
Mas a violenta e desequilibrada reação do mercado fez questão de não levar em conta que o pacote atenta contra a classe trabalhadora ao rever a política de valorização do salário mínimo (o salário mínimo terá aumento real menor do que teria sem o pacote fiscal, seguindo a regra do arcabouço mencionada acima); ao mostrar que o abono salarial terá corte gradual de forma a transitar dos atuais 2 salários mínimos para 1,5 salário mínimo e reajuste pela inflação; e ao sinalizar que programas sociais do governo, como o bolsa família e BPC, por exemplo, estão sob pressão (vale ressaltar que estudo recente do IBGE mostra que, se não existissem os benefícios de programas sociais, a extrema pobreza teria subido, passando de 10,6%, em 2022, para 11,2%, em 2023).
Ou seja, a cegueira intencional e o silêncio ensurdecedor do mercado financeiro sobre os perversos efeitos do pacote fiscal à classe trabalhadora mostra a voracidade dos famintos especuladores que se alimentam das contradições e limitações do sequestrado Estado Brasileiro aos ditames dos capitais fictícios e parasitários. Para firmar: o mau humor do mercado não expressa a ameaça que o pacote fiscal representa à classe trabalhadora! É puro suco de insaciabilidade egoísta! E, evidentemente, isso era de se esperar!
O governo Lula, imerso nesta armadilha da acomodação política e econômica, sinaliza ao mercado que não alterará sua subordinada relação com a especulação financeira, ao tempo que aponta para a classe trabalhadora e mira em sua cada vez mais limitada capacidade de se reproduzir como força de trabalho, se reproduzindo com dívidas e produzindo endividados.
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